Dias atrás,
voltei à Ásia Menor, pois ouvira dizer que, em sua principal igreja, havia um
púlpito de ouro puro e maciço. Já tomado pela curiosidade, resolvi conhecer
pessoalmente a tal basílica. Enquanto arrumava as malas, crescia em mim uma ira
meio santa e um tanto carnal. Por que tamanha ostentação se o berço do Menino
Jesus era uma manjedoura singela e tosca? Como a viagem era longa, dava para
controlar o meu ímpeto. Eu jamais permitiria que o sol da Capadócia se pusesse
sobre aquela minha raiva.
Ao
desembarcar na Anatólia, fui gentilmente acolhido pelo Velho Teólogo, que eu
conhecera na viagem anterior. Ele já dispunha de um transporte rápido e seguro,
para conduzir-nos à tão decantada sé eclesiástica.
Enquanto caminhávamos pelas ruas daquele continente
juncado de crônicas, histórias e arqueologias, o Ancião, qual enciclopédia
romeira e mártir, ia narrando-me o interessante caso da igreja do púlpito de
ouro. A certa altura, perguntei-lhe:
– Irmão,
onde exatamente fica essa catedral?
Ele, um
tanto surpreso, corrigiu-me com delicadeza e lhanura:
– Quem
disse catedral? Nem catedral, nem basílica, nem sé. Aliás, nossas igrejas nem
igrejas parecem; são casas modestas e despossuídas de opulência. Não obstante,
posso garantir-lhe que, aqui, temos uma congregação, cujo púlpito é de maciço e
puro ouro.
Não
querendo contrariar o Velho Teólogo, acompanhei-o silenciosamente, até pararmos
defronte a um domicílio tão simples e rude como rude e simples era a cruz do
Filho de Deus. Franzindo a testa, o Ancião desconsolou-se:
– O
púlpito de ouro está aqui. Seria aquilo um gracejo clerical? O Velho Teólogo,
porém, era conhecido por sua gravidade; não era dado a chistes, nem a facécias.
Vendo-me a reação, introduziu-me no santuário. Ali, bem ali, estava o púlpito
de ouro. Acho que nem Florença seria capaz de lavrar semelhante joia. Para a
minha surpresa, meu amigo aproximou-se do púlpito. E, reverentemente, pôs-se a
contemplá-lo. Seu olhar parecia retroceder a um tempo que já era história.
Quanto a mim, não podendo mais conter a curiosidade, perguntei-lhe quem mandara
construir uma obra tão prima e tão excelente. Pausadamente, respondeu-me o
ancião:
– Este
púlpito foi cinzelado por alguns amigos meus: Paulo, Timóteo e Tíquico. Aliás,
eu mesmo ajudei a lavrá-lo. Nos últimos anos, aqui estive para dar-lhe os
derradeiros retoques.
– O
senhor se refere ao apóstolo Paulo e aos seus colegas de ministério?
– Sim,
refiro-me ao Doutor dos Gentios e aos seus companheiros.
A
seguir, narrou-me de que forma vieram a concluir semelhante primor. O ouro
utilizado não se encontra em qualquer lugar. É necessário ir às minas de Ofir,
onde os profetas e os apóstolos do Cordeiro extraíram-no dos veios mais
profundos, escondidos e cobiçados. Metal raríssimo; inapreciável. Acumulado em
dois compartimentos, o material é de um brilho peregrino. O primeiro
compartimento é o Antigo Testamento, e o segundo, o Testamento Novo. Toda essa
riqueza é administrada pelo Filho de Deus, em quem se acham ocultos todos os
tesouros da sabedoria, da ciência e do conhecimento.
A essas
alturas, desconcertei-me, e indaguei do Velho Teólogo:
– Se
este púlpito foi trabalhado por homens tão santos e sábios, qual o problema com
ele? Não é o que todas as igrejas almejam?
O ancião
olhou-me bem nos olhos. Fez uma pausa. Respirou fundo. E acrescentou:
– O
problema não é o púlpito de ouro, mas o coração de bronze do pastor. Até
recentemente, todos pensavam que o seu coração também era de ouro. Brilhava.
Reluzia. Mas o Cordeiro, que a todos escrutina, instruiu-me a enviar-lhe uma
carta, denunciando o brilho falso de seu ministério. Houve um tempo, em que o
seu coração também era de ouro. Mas o estresse do tempo fê-lo passar do ouro ao
bronze. À distância até parece ouro, mas não resiste a um exame mais detido e
minucioso.
Em seguida,
mostrou-me a cópia da carta do Cordeiro. Escrita num grego simples e com letras
unciais, era direta e incisiva:
“Ao anjo
da igreja em Éfeso escreve: Estas coisas diz aquele que conserva na mão direita
as sete estrelas e que anda no meio dos sete candeeiros de ouro: Conheço as
tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança, e que não podes suportar
homens maus, e que puseste à prova os que a si mesmos se declaram apóstolos e
não são, e os achaste mentirosos; e tens perseverança, e suportaste provas por
causa do meu nome, e não te deixaste esmorecer. Tenho, porém, contra ti que
abandonaste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te
e volta à prática das primeiras obras; e, se não, venho a ti e moverei do seu
lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas” (Apocalipse 2.1-5).
No
pergaminho, vi umas lágrimas. Não posso dizer se do Ancião ou do Cordeiro.
O pastor
da Igreja de Éfeso possuía um currículo invejável. Nenhuma convenção haveria de
rejeitá-lo, pois todos o queriam como anjo e guardião. Todavia, posto que o seu
coração não era mais de ouro, o Cordeiro estava prestes a remover-lhe o
castiçal.
Narrou-me
o Velho Teólogo que, no princípio, o pastor de Éfeso pregava o evangelho puro e
simples do Filho de Deus. Mas, como tempo, substituiu-o por um arrazoado
meramente combativo e racional. Ele já não pregava; debatia. Não proclamava a
verdade; limitava-se a desconstruir, filosoficamente, as investidas dos
gnósticos, nicolaítas e judaizantes. E, assim, trocou o ouro da mensagem da cruz
pelo bronze da polêmica. Enfim, agiu como Roboão que, privado dos escudos de
ouro que fizera o pai, Salomão, substituíra-os por outros de bronze.
– Então,
não podemos ser apologetas? Questionei-lhe.
–
Podemos e devemos; é a nossa obrigação. Mas a apologética não é um fim em si
mesma. Se pregarmos o Evangelho conforme nos recomenda a Bíblia, nossa mensagem
será natural e irresistivelmente apologética. É o que nos recomenda os irmãos
Paulo e Pedro.
Enquanto
conversávamos, chegou o pastor da igreja. De presença imperial e nobre,
cumprimentou-nos. Em seguida, perguntou-me pela viagem e por minha igreja.
Depois, pediu-me licença para falar a sós com o Teólogo. A conversa deve ter
durado uns 40 minutos. Ao deixarem o gabinete pastoral, ambos estampavam um sorriso
aberto, largo e radioso. Despedimo-nos do pastor de Éfeso. E, já na rua, a
caminho da condução, perguntei ao Teólogo o que havia acontecido. Ele me
respondeu:
– Nada
de mais. Apenas um procedimento cirúrgico. O Cordeiro tirou-lhe o coração de
bronze, e tornou a dar-lhe o de ouro. Para Jesus, uma operação corriqueira.
Como Ele substitui corações de pedra por corações de carne, não lhe foi difícil
trocar os metais. Difícil mesmo é operar corações de madeira e palha. Mas, se o
paciente quiser, sempre se dá um jeito.
Despedindo-nos,
o Velho Teólogo convidou-me a visitar, da próxima vez, a igreja do anjo nu.
Fiquei curioso. Se Deus me der vida e saúde, voltarei à Ásia Menor no próximo
mês. Espero que a taxa de câmbio seja-me um pouco mais favorável.
Por, Claudionor
de Andrade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário