Era uma vez
um Sapato Ferrado, era uma vez uma Sandália de Veludo, que o destino reuniu,
certa manhã, na vitrina de uma sapataria.
Ele, de
couro grosso, feio, forte, pesadão. Ela, pequenina, mimosa, delicada, com
bordados de ouro, laçarotes de seda e fivelinha de prata.
A sina dele
(via-se logo ao primeiro olhar) não podia ser outra senão andar em pés
grosseiros, sobre lama e sobre pedra; ela (ao primeiro olhar se via) tinha sido
feita para viver em palácios, sobre ricos tapetes, nos pezinhos delicados de
uma mulher fidalga.
Se não se
pareciam no corpo, muito menos na alma. A dele era simples, lisa, complacente,
bonachão. A dela, vaidosa, fútil, insaciável e complicada.
Quando o
Sapato Ferrado entrou na vitrina, já a Sandália de Veludo lá estava desde a
véspera.
E quando ele
entrou, houve entre os calçados um visível mal-estar.
A Botinha de
Cano Alto tocou escandalizada no Sapato Raso. A Botinha de Cromo soltou uma
exclamação de surpresa. A Bota de Montar, com toda a sua elegância de maneiras,
não pôde esconder uma ruga de aborrecimento. O Sapatinho de criança fez uma
careta. E até a Chinela de França mostrou-se espantada.
Mas quem fez
escândalo foi a Sandália.
Ao vê-lo
entrar, deu um ui! de espanto como se tivesse visto um bicho e, chegando-se
para junto do Sapato de Entrada Baixa, disse sem a menor precaução:
- Que
sujeito mal-amanhado. Quererá, porventura, viver em nossa companhia?
Quando, mais
tarde, a sapataria abriu as portas e o povo começou a parar diante da vitrina,
cada calçado cuidou de colocar-se em posição de ser visto da rua.
Ele, o
Sapato Ferrado, deixou o cantinho a que estava recolhido e veio para a frente.
- Chegue-se
para lá! Gritou-lhe irritadamente a Sandália de Veludo. Faça o favor de não
ficar perto de mim.
- Mas eu
preciso mostrar-me. Para isso é que me puseram na vitrina.
- Sim, mas
para lá, muito para lá! O mais possível! Veja bem a distância que nos separa.
Na rua um
grupo de moças que vinha passando parou.
- Que mimo
de Sandália!
- Que lindo
Sapato de Entrada Baixa!
- Que fina
Bota de Montar!
- Oh! no
meio de tanto calçado rico um Sapato Ferrado tão feio! exclamou uma das moças.
O Sapatinho
de Criança encheu o rosto com um riso inconveniente. A Botinha de Cromo virou
de banda para rir. O Sapato Raso imitou-a.
- Não acho
graça nenhuma, disse a Sandália de Veludo. O que sinto é vergonha. Vergonha de
viver nesta vitrina em tão má companhia.
À tarde, o
Sapato Ferrado desapareceu da vitrina. Um homem do campo comprara-o.
Passou-se.
Um dia uma
carroça de lixo atirou o Sapato Ferrado para cima de um monturo. Minutos depois
ouviu ele uma voz dizer-lhe baixinha:
- Amigo,
acabo de reconhecê-lo.
Era uma velha
Sandália descorada e gasta. O Sapato Ferrado ficou silencioso, sem saber quem
lhe falava.
- Não tenho
essa honra, senhora.
- Não se
lembra de que estivemos juntos na vitrina de uma sapataria?
- Oh! é a
Sandália de Veludo!
- Eu, sim!
Estarei tão feia e tão velha que não lhe pareço a mesma?
- Não. É que
lhe falta tanta coisa... Onde estão os laçarotes de seda? E os bordados d'ouro?
E a fivelinha de prata?
- O tempo
levou. A velhice destruiu. Amigo, conte-me, conte-me lá a sua história! Foi
feliz?
- Fui. Tanto
quanto pode ser feliz um Sapato Ferrado. O homem que me comprou levou-me para
uma fazenda, meteu-me nos pés e andou comigo ao sol, à chuva, sobre pedras,
sobre lama. Quando não prestei para mais nada, atirou-me ao lixo.
- Que
horror! exclamou a Sandália. E amigo não se acanha, de contar uma vida tão
inferior? Sobre pedras, sobre lama ... Fui muito mais feliz.
- Pudera!
Teve a sorte das Sandálias de Veludo.
- A mulher
que me comprou era uma grande dama. Vivi num palácio luxuoso, entre objetos
caros, pisando em tapetes ricos. A minha vida foi brilhante, muito mais
brilhante que a sua.
O Sapato
Ferrado ficou silencioso por alguns segundos. Depois sorriu e disse tranquilamente:
- No
entanto, no entanto, viemos os dois acabar no mesmo monturo.
CORREA, Viriato. Cazuza. 41. ed. São Paulo:
Companhia Editorial Nacional, 2002. p. 85-87
Disponível no blog: ribanogueira.blogspot.com.br
como fiquei feliz em encontrar esta Historia do meu livro de Português ,de quase 40 anos atrás , obrigado por postar .fiquei feliz em reler esta linda Historia.
ResponderExcluirFique a vontade Nena.
ExcluirTb nunca esqueci desta estoria,desdea infancia,grande lução de vida!
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