sábado, 29 de janeiro de 2022

LIÇÃO 5: COMO LER AS ESCRITURAS

INTRODUÇÃO 

Ler e estudar as Escrituras são um dever e um privilégio. Por isso, como servos de Deus, temos o compromisso de zelar pelo conhecimento bíblico e estar conscientes da necessidade de aplicar o texto sagrado em nossas vidas. O apóstolo Tiago alerta que devemos ser cumpridores da Palavra e não apenas ouvintes (Tg 1.22). Nesse propósito, a Bíblia Sagrada deve ser lida e interpretada. No cumprimento dessa tarefa, somos auxiliados pela exegese e pela hermenêutica. Contudo, nenhuma das técnicas de interpretação está acima da autoridade da Palavra de Deus. O que a igreja crê e professa deve ser interpretado à luz da própria Escritura. Neste capítulo, veremos a importância dos princípios basilares da interpretação bíblica.

I – A BÍBLIA PRECISA SER INTERPRETADA

1. A Importância da Exegese. O termo “exegese” vem do grego “ex”, traduzido como “fora”, e “agein”, com o sentido de “guiar”. Literalmente, significa “guiar para fora”, isto é, extrair a intenção das palavras de um texto. Quando se fala de exegese bíblica, entende-se o termo como explicação e interpretação de um ou mais textos bíblicos. O exegeta reformado Uwe Wegner defende que “a exegese quer ajudar a compreender os textos bíblicos, apesar da distância de tempo e espaço e das diferenças culturais”.  Os teólogos pentecostais concordam com essa assertiva, e acrescentam que o alvo da exegese é deixar que as Escrituras digam o que o Espírito Santo pretendia no seu contexto original.

Para sustentar o alicerce da interpretação, usa-se a hermenêutica como metodologia da exegese bíblica. A palavra “hermenêutica” origina-se do verbo grego “hermeneuein”, cujo significado é igual ao da exegese, ou seja, “interpretar”. Contudo, deve-se deixar clara a diferenciação entre um termo e outro. A hermenêutica bíblica designa os princípios que regem a interpretação dos textos; a exegese descreve as etapas ou os passos que cabe dar em sua interpretação. Em síntese, a hermenêutica apresenta as regras e a exegese é a prática dessas regras.

Diante dessas conceituações e com o propósito de evitar as falácias, interpretação superficial ou equivocada da Bíblia, a hermenêutica e a exegese apresentam ferramentas que auxiliam na correta interpretação e aplicação dos textos sagrados. Nesse objetivo, para não fazer o texto significar aquilo que Deus não pretendeu, é necessário um minucioso exame das Escrituras (2 Tm 2.15). Por exemplo, o estudo das línguas bíblicas, dos fatos da história, das questões sociopolíticas, das particularidades da cultura e dos recursos literários usados no texto sagrado coopera para a compreensão do real significado das palavras inspiradas (Ef 3.10- 18). Portanto, a exegese não deve e não pode ser menosprezada durante a leitura e o estudo da Bíblia.

2. As Limitações dos Leitores. Nesse aspecto é preciso reconhecer que toda a vez que lemos a Bíblia estamos interpretando. Isso porque todos os leitores são também intérpretes (Dn 9.2). O problema dessa constatação reside nas ideias que trazemos conosco antes mesmo de começarmos a leitura da Bíblia (Ef 4.22). O erudito D. A. Carson adverte que “é fácil demais aplicarmos ao texto bíblico as interpretações tradicionais que recebemos de terceiros. Então, podemos involuntariamente transferir a autoridade das Escrituras para as nossas interpretações tradicionais”. Em vista disso, nem sempre o “entendimento” daquilo que lemos reproduz a verdadeira “intenção” do Espírito Santo (2 Pe 3.16).

Acerca dessa realidade, Walter Henrichsen anota que “nas questões de religião o cristão se submete, consciente ou inconscientemente, a uma das seguintes autoridades, acatando-a como autoridade última: a tradição, a razão, ou as Escrituras”. Nossa avaliação é que a tradição não é totalmente um erro, uma vez que muitas práticas da Igreja são essencialmente bíblicas, porém, o que se deve combater é “a elevação da tradição a um status igual ou até mesmo superior das Escrituras”. Cristo advertiu que se tornar prisioneiro da tradição invalida a Palavra de Deus (Mc 7.13).

Quanto ao uso exclusivo da razão na interpretação bíblica, tal prática constitui-se em verdadeira tragédia para a fé. Liberalismo, cientismo e modernismo são os termos comumente utilizados para descrever esse tipo de conduta. Nossa teologia pentecostal afirma que defensores dessas teorias causam inevitáveis consequências ao Evangelho, tais como: “incredulidade, leniência para com o pecado; relativismo moral e ético; relaxo para com a evangelização, etc.”. Desse modo, contrapondo a posição que coloca a autoridade final de interpretação na “tradição” ou na “razão”, o pentecostalismo se apresenta como ortodoxo e coloca a Escritura “no lugar em que ela tem de estar como a nossa suprema e inquestionável árbitra em matéria de fé e prática. Se a Escritura diz, é a nossa obrigação ser[1]lhe obediente sem quaisquer questionamentos”.  

Com essa percepção, reafirma-se que a Bíblia é o supremo tribunal de recursos, isto é, a Escritura é a autoridade última em questões de fé, normas, conduta, percepção e visão de mundo para o autêntico cristão. No entanto, em virtude de nossa inclinação pecaminosa que nos induz ao erro (Rm 8.7), precisamos usar métodos sadios que nos auxiliem na interpretação das Escrituras (Rm 12.2). O teólogo D. A. Carson insiste que “estamos lidando com os pensamentos de Deus; somos obrigados a nos esforçar o máximo para entendê-los verdadeiramente e explicá-los com clareza”. 9 Essa é uma nobre tarefa atribuída a todo salvo em Cristo Jesus (1 Tm 4.13; Ap 1.3).

3. A Natureza das Escrituras. Nesse ponto, ratificamos que a necessidade de a Bíblia ser interpretada acha-se na natureza da própria Palavra de Deus. Como já estudado, o texto bíblico foi escrito majoritariamente em duas línguas distintas (hebraico e grego), no período aproximado de 1600 anos, por cerca de 40 autores que viveram em épocas e culturas diferentes. Portanto, os textos canônicos possuem particularidades que não podem ser ignoradas. Dentre tantas, podemos citar as narrativas, as poesias, as crônicas, as profecias e as parábolas que precisam ser interpretadas, sob a orientação do Espírito Santo, observando as regras gramaticais e o contexto histórico e literário de quando foram redigidas (Mt 5.18).

Em virtude dessas características, no período dos Pais da Igreja, o desenvolvimento dos princípios da hermenêutica e da exegese deu-se basicamente em três grandes centros: (a) A Escola de Alexandria, que era dotada de um espírito conciliatório e tentava harmonizar a doutrina cristã com a filosofia da época por meio de uma abordagem alegórica; (b) A Escola de Antioquia, que era caracterizada pela abordagem literal das Escrituras, na busca pelo sentido primário pretendido pelo autor; e (c) A Escola Ocidental, que ficou marcada pelo acréscimo de outro elemento, a saber, a autoridade da tradição e da Igreja na interpretação da Bíblia.

Essa última escola adentrou a Idade Média, e, nessa época, a interpretação bíblica ficou refém da tradição e dos concílios da Igreja. Quanto a essa deplorável situação, Hugo de São Vitor (1096- 1141 d.C.) escreveu o seguinte: “aprende-se primeiro o que deves crer e então vai à Bíblia para encontrar confirmação”. Nesse contexto, na Alemanha foi deflagrada a Reforma Protestante (1517 d.C.). E, com a influência da Renascença, se passou a dar atenção ao conhecimento das línguas originais a fim de entender a Bíblia. A compreensão histórico-gramatical começou a ser valorizada. Os dois grandes expoentes são Martinho Lutero e João Calvino. É de Calvino a célebre frase: “O intérprete deve permitir que o autor diga o que realmente diz, invés de lhe atribuir o que pensamos que devia dizer”.

II – PRESSUPOSTOS PENTECOSTAIS PARA LER A BÍBLIA

1. Autoridade da Bíblia. Uma das marcas do Pentecostalismo é o seu compromisso inegociável com as Escrituras. Cremos na inspiração divina, verbal e plenária da Palavra de Deus, nossa autoridade final em questões de fé e prática (2 Tm 3.16). Portanto, ao ler o livro sagrado, temos como pressuposto sua inerrância e infalibilidade. Tudo o que está escrito é verdadeiro e serve para o nosso ensino (Rm 15.4). Nessa compreensão, refutamos a relativização, ressignificação e desobediência dos preceitos bíblicos (Ap 22.19). Acatamos suas doutrinas, reconhecemos a realidade do sobrenatural, a literalidade dos milagres e a atualidade do batismo no Espírito Santo e os dons espirituais (At 2.39). Esse entendimento é chancelado pelos proeminentes teólogos pentecostais William Menzies e Stanley Horton na obra Doutrinas Bíblicas, na qual lemos:

A origem divina e a autoridade das Escrituras asseguram-nos ser a Bíblia também infalível, ou seja: incapaz de erro, ou de orientar de maneira enganosa, ludibriadora ou desapontadora a seus leitores [...] Tal inerrância e infalibilidade aplicam-se a toda a Palavra de Deus, e inclui tanto a inerrância das revelações quanto a dos fatos narrados. As Escrituras revelam-nos a verdade.

Essa percepção pentecostal sinaliza que a autoridade da Bíblia Sagrada é suprema. O que está escrito deve ser crido e obedecido, jamais questionado ou relativizado. Com essa premissa, repudiamos o liberalismo teológico, tais como a teoria de demitização do texto bíblico proposta por Rudolf Bultmann, para quem “a Bíblia só é crível se dela extirparmos os mitos — milagres, sinais, teofanias e outras revelações sobrenaturais”. Contestamos o método hermenêutico proposto por Bultmann de redescobrir o significado oculto atrás de supostas concepções mitológicas. Nesse diapasão, a teologia pentecostal ratifica o seu compromisso com a autoridade bíblica. Essa postura identifica os pentecostais como o povo cuja regra áurea de fé e prática repousa na autoridade da Bíblia Sagrada.

2. A Iluminação do Espírito Santo. A doutrina da Iluminação se refere à atuação do Espírito Santo na vida do crente, que o capacita a discernir as verdades da Palavra de Deus (Ef 1.17,18; 1 Jo 5.20). Portanto, a iluminação se faz necessária para a compreensão da Bíblia. O ser humano toma conhecimento da salvação por meio das Escrituras, mas somente o estudo racional não é suficiente para o entendimento da revelação escrita de Deus. É imprescindível que haja iluminação do coração e da mente. William Menzies atesta que o Espírito Santo “nos ilumina a mente para que compreendamos a Sua Palavra conforme no-la transmitiram os autores sagrados (1Co 2.12; Ef 1.17,18)”.

Entre as operações do Espírito Santo está o ensino e a iluminação da verdade: “o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas” (Jo 14.26); “Ele vos guiará em toda a verdade” (Jo 16.13). Nesse quesito, Lewis Chafer argumenta que esse despertamento pode ser retardado pelo pecado ou pela imaturidade do crente. Essa realidade explica a diferença entre o cristão espiritual, que “discerne todas as coisas”, e o cristão carnal, que não pode receber as verdades mais profundas e vitais (1 Co 2.14-16). Nesse entendimento, Chafer assinala uma tríplice divisão da humanidade em sua atitude em relação à Palavra de Deus:

(1) O homem natural ou não-regenerado não pode receber as Escrituras, visto que elas são discernidas pelo Espírito, e o homem natural, conquanto educado com tudo o que o olho, o ouvido e o poder de raciocínio possam comunicar, não recebeu o Espírito; portanto, toda a revelação é “loucura” para ele (1Co 2.14); (2) O homem espiritual está numa posição de receber toda verdade (não há sugestão de que ele já a alcançou). Ele é habitado pelo Espírito Santo e todos os ajustes a respeito da sua vida diária são feitos com a finalidade de que o Espírito Santo não possa ser obstruído em seu ministério de ensino dentro do seu próprio coração (1Co 2.15); (3) O cristão carnal demonstra sua carnalidade por sua incapacidade de receber as verdades mais profundas que são comparados a uma comida sólida em contraste com o leite (1Co 3.1-3).

Nessa perspectiva, os cristãos na Ásia Menor foram exortados a ter “iluminados os olhos do entendimento” (Ef 1.18a). Trata-se de uma operação do Espírito que resulta em “iluminação interior”. Implica ter um conhecimento mais claro, e, certamente, inclui uma compreensão plena, não somente clareza intelectual, mas também a clareza espiritual e experimental da Palavra de Deus. Contudo, a iluminação não é uma fonte paralela de revelação e nem substitui o exame das Escrituras, ao contrário, pois, à medida que estudamos, o Espírito nos concede a compreensão. A iluminação não aumenta e nem altera a Bíblia; apenas elucida o que já foi revelado pelo Espírito. Assim, o conhecimento da Palavra produz comunhão com Deus, vida de oração, obediência e santificação (2 Pe 1.3-10).

3. O Valor da Experiência. O valor da experiência é, por vezes, mal interpretado em alguns círculos evangélicos. Com frequência, os pentecostais são injustamente acusados de colocar a experiência acima da autoridade da Palavra de Deus. Porém um dos princípios hermenêuticos ensina o crente a “interpretar a experiência pessoal à luz da Escritura, e não a Escritura à luz da experiência pessoal”. Significa que, por mais importante que seja a experiência pessoal, ela não é a autoridade final de nossa fé. As experiências precisam do aval das Escrituras para ser validadas. Toda e qualquer experiência que contraria os preceitos bíblicos deve ser desconsiderada. Paulo asseverou que, se até um anjo do céu vos anunciar outro evangelho, tal experiência deve ser rejeitada (Gl 1.8).

De outro lado, a experiência também não pode ser negligenciada. As doutrinas bíblicas devem ser experimentadas e vividas pelos crentes em Jesus. Nossa Declaração de Fé faz várias assertivas acerca dessa necessidade, dentre elas estão: (a) O aceitar Jesus como a experiência da salvação, quando o Espírito Santo passa a habitar no novo crente (1 Co 3.16); (b) O batismo nas águas como um testemunho público da experiência anterior, o novo nascimento, mediante a qual o crente participa espiritualmente da morte e da ressurreição de Cristo (Cl 2.12); (c) O batismo no Espírito Santo como uma experiência espiritual que ocorre após ou junto à regeneração, sendo acompanhada da evidência física inicial do falar em outras línguas (At 2.4).

Nessa compreensão, o texto sagrado é útil para o ensino, repreensão e correção a fim de tornar o salvo perfeito (2 Tm 3.16,17). Essas declarações demonstram que a Bíblia deve ser aplicada ao nosso viver diário. As verdades bíblicas são confirmadas quando experimentadas pela Igreja do Senhor (Mc 16.20). Nesse aspecto, por exemplo, cremos que o livro de Atos não apenas descreve a experiência pentecostal da Igreja Primitiva, como também a torna válida para os nossos dias (At 2.1-4, 38, 39). Ressalta-se, porém, que a experiência ou a tradição da Igreja não podem estar acima da autoridade bíblica. Somente a Escritura é que pode autenticar e até mesmo corrigir a experiência ou a prática da Igreja, caso seja necessário (2 Tm 4.2).

III – REGRAS BÁSICAS DE INTERPRETAÇÃO

1. A Escritura é sua própria Intérprete. Como já visto, a “hermenêutica” designa os princípios que regem a interpretação dos textos sagrados. E, conforme observa Gordon Fee, “embora a palavra abranja o campo inteiro da interpretação, inclusive a exegese, também é usada no sentido mais estreito de procurar a relevância contemporânea dos textos antigos”. Nesse propósito, Martinho Lutero (1483-1546 d.C.) desenvolveu a máxima que a Escritura tem de ser interpretada e entendida por si própria (Is 8.20). Durante a Reforma Protestante, em 15 de junho de 1520, por meio da bula Exsurge Domine, Lutero foi acusado de interpretar as Escrituras pelo espírito humano, em oposição à tradição e a interpretação oficial da Igreja Católica.

Em sua defesa, Lutero insistiu que a Bíblia deve ser interpretada por ela mesma: “Eu não quero ser elogiado por ser mais culto do que todos, mas por ter somente a Escritura por regra. Também não quero que ela seja interpretada pelo meu próprio espírito ou por qualquer espírito humano, mas entendida por si própria e por seu próprio espírito”. Essa afirmação culminou na máxima “a Escritura é a sua própria intérprete”. No sentido passivo, a frase indica que as passagens obscuras da Bíblia devem ser lidas à luz das mais claras. Porém, esse não é o único sentido possível. Em seus escritos, Lutero falou da Escritura como sujeito ativo, isto é, no engajamento com a Palavra de Deus, é tarefa do exegeta permitir que o Espírito da Escritura o ilumine (Sl 119.105).

Desse modo, apesar de a Bíblia possuir uma heterogênea estrutura literária, dezenas de autores distintos, e aspectos culturais e históricos diversos, Lutero ensinou que o seu significado “era claro para quem presta atenção à gramática do texto e à liderança do Espírito”. Essa propositura, valida o estudo das Escrituras seguindo o método pelo qual uma parte do texto auxilia na compreensão de outro texto, e assim ilumina o entendimento do intérprete. Tal afirmação é verdadeira porque a coesão da Escritura é o resultado de um único autor divino (Pv 30.5,6). Contudo, embora esse método seja legítimo, o estudante das Escrituras precisa do auxílio de regras básicas para uma correta interpretação. Esse cuidado é importante para não incorrer no erro de fazer um texto significar aquilo que Deus nunca pretendeu.

2. Princípios de Interpretação Bíblica. Nossa Declaração de Fé assegura que os pentecostais interpretam as Escrituras “sob a orientação do Espírito Santo, observando as regras gramaticais e o contexto histórico e literário”. O historiador Isael de Araujo enfatiza que o método histórico-gramatical vem sendo reafirmado como uma reação ou alternativa em relação ao método histórico-crítico, que foi intensamente difundido no século XX:

A interpretação histórica se refere ao contexto em que os livros da Bíblia foram escritos e às circunstâncias em jogo. A interpretação gramatical se refere à apuração do sentido dos textos bíblicos mediante estudo das palavras e das frases em seu sentido normal e claro. Em termos simples e objetivos, há três estágios para o método: observação (o que diz o texto), interpretação (o que quer dizer o texto) e aplicação (o que o texto quer dizer para nós).

Nessa concepção, o artigo em comento destaca que “os defensores desse método na hermenêutica pentecostal argumentam que a intenção autoral propagada pelo método histórico-gramatical é testada pelo tempo (desde os primórdios da igreja com a escola de Antioquia) e ideal para um sadio método de interpretação bíblica pentecostal”. Em contrapartida, debate-se a construção da “hermenêutica pentecostal” em solo brasileiro. Essa discussão resultou na publicação de um manifesto do Conselho de Doutrina e Comissão de Apologética da CGADB, com os seguintes esclarecimentos:

A Hermenêutica Pentecostal sadia não é uma negação do método histórico-gramatical. Por outro lado, não é um apego rigoroso e absoluto a esse método, cujo emprego não conduziu a fé reformada à compreensão e crença na atualidade da obra do Espírito Santo, tal qual prometida por Jesus e vivenciada pelos apóstolos e pelas igrejas do Novo Testamento. Conquanto se valha de ferramentas da erudição bíblica, a Hermenêutica Pentecostal não flerta com quaisquer das aplicações do método histórico-crítico ou da atual crítica literária e histórica que negam a plena inspiração das Escrituras e a literalidade dos milagres.

Concordes com esse posicionamento, dentre os princípios gramaticais, históricos e literários, enfatizamos que o texto bíblico tem sentido único e sempre que possível deve ser interpretado literalmente. Nesse aspecto, é preciso tomar cuidado com as expressões de uso simbólico/alegórico. Por exemplo, Cristo disse: “Tomai, comei, isto é o meu corpo” (Mt 26.26). Esse texto mostra que corpo aqui não é no sentido literal, mas no figurado. Outro princípio refere-se ao contexto, isto é, analisar os versículos que precedem e seguem o texto que se estuda. Diz a máxima que “texto fora do contexto é pretexto”. Desse modo, observados esses princípios, a Bíblia precisa ser interpretada no todo, nenhuma doutrina pode basear-se em único texto ou em hipóteses particulares (2 Pe 1.20).

3. Os perigos da hermenêutica Pós-Moderna. A denominada hermenêutica pós-moderna nega que existe um sentido absoluto para a verdade bíblica, e, portanto, busca rever ou ressignificar a verdade revelada na Palavra de Deus. Nesse debate, a hermenêutica na perspectiva pentecostal também foi acusada de promover interpretações exclusivamente baseadas na experiência do leitor. Diante disso, as Assembleias de Deus no Brasil se manifestaram nos seguintes termos:

É preciso estabelecer com firmeza com o que não comungam os pentecostais clássicos em termos de técnicas de interpretação. Isso é imperativo especialmente diante de métodos hermenêuticos pós-modernos, focados no leitor e não no autor e no texto, e que emprestam à experiência um lugar que a ela não cabe no processo interpretativo. Isso não é Hermenêutica Pentecostal.

Em suma, nossa ortodoxia refuta todo e qualquer método que nega a inspiração verbal e plenária da Bíblia e sua consequente autoridade (2 Pe 1.21). Assim sendo, o intérprete não pode criar outro cânon dentro do cânon bíblico, ou seja, não cabe ao estudante fragmentar ou relativizar os textos inspirados. Não se pode empregar métodos subjetivos focados nos anseios do leitor em prejuízo do texto e do autor bíblico. Ratifica-se que as experiências devem ser submetidas ao crivo das Escrituras Sagradas (At 17.11). Por fim, as Assembleias de Deus reconhecem que as técnicas hermenêuticas não são infalíveis. Durante o processo de aplicação dos métodos interpretativos, o crente necessita da iluminação do Espírito Santo (1 Co 2.12).

Fonte: BAPTISTA, Douglas. A supremacia das Escrituras: a inspirada, inerrante e infalível palavra de Deus. Rio de Janeiro: CPAD, 2022, p. 57-64.

 




 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

LIÇÃO 4: A ESTRUTURA DA BÍBLIA


   INTRODUÇÃO

A Bíblia Sagrada foi escrita majoritariamente em hebraico e grego, em um período aproximado de 1.600 anos, por cerca de 40 homens, e se estrutura em Antigo e Novo Testamento. Seus livros são divinamente inspirados e constituem o cânon bíblico. O conjunto dos 66 livros forma um único livro: a Bíblia Sagrada. Os critérios para avaliação da canonicidade são a inspiração, o reconhecimento e a preservação dos livros como Palavra de Deus.

A comprovação desses critérios revela que as Escrituras foram aceitas e preservadas como livros autorizados por Deus. O testemunho do próprio autor divino no coração das pessoas é quem provoca o reconhecimento de que a Escritura é a Palavra de Deus. Toda ela é nossa única regra de fé e prática. Neste capítulo, veremos como a Bíblia está organizada, a classificação de seus livros, a canonicidade e as particularidades dos Testamentos.

I – COMO A BÍBLIA ESTÁ ORGANIZADA

1. Definição do Termo Bíblia - A palavra “Bíblia” tem origem tanto no vocábulo grego como no latim. O termo grego “biblos” significa “livro” e tem conotação de qualidade sagrada. A palavra “bíblia” no latim é um substantivo feminino singular que igualmente exprime a ideia de “livro”. Por volta do ano 150 d.C., os cristãos passaram a usar o termo em latim “ta bíblia” (os livros) para referir-se ao conjunto de livros inspirados por Deus. O Dicionário Bíblico Wycliffe explica que o singular biblia em latim testemunha que os 66 livros (39 no AT e 29 no NT) revelam uma unidade de pensamento e uma pureza. Por isso, a coleção dos livros sagrados forma um único livro.

O erudito F. F. Bruce esclarece que o uso da expressão “a Bíblia” entre os cristãos foi inaugurado por Clemente de Roma. Essa declaração é referendada pela chamada segunda epístola escrita por Clemente (150 d.C.), em que o bispo redigiu: “os livros (ta bíblia) e os apóstolos declaram que a igreja existiu desde o princípio”. Porém, antes disso, o profeta Daniel, por volta do ano 538 a.C., já havia se referido às Escrituras do Antigo Testamento como sendo “os livros” (Dn 9.2). No Novo Testamento, termos sinônimos são utilizados para identificar “os livros sagrados”. O vocábulo mais comum e mais conciso empregado pelo Senhor Jesus é “as Escrituras” (Mt 21.42; Jo 5.39). Paulo também usa as expressões “as Santas Escrituras” e “as sagradas letras” (Rm 1.2; 2 Tm 3.15).

O Dicionário Bíblico Wycliffe, também anota que vários outros termos descritivos são encontrados no Novo Testamento para referir-se aos escritos do Antigo Testamento, tais como “a Lei” (Mc 5.18; Lc 16.17; Jo 12.34); “Moisés e os Profetas” (Lc 16.29; 24.27); “a Lei e os Profetas” (Mt 22.40; Lc 16.16); “a Lei de Moisés, os Profetas e os Salmos” (Lc 24.44). Nesse aspecto, é importante ressaltar que a designação de uso mais frequente no texto bíblico é o termo “as Escrituras” (plural) ou “a Escritura” (singular), e refere-se tanto aos livros inspirados do Antigo como do Novo Testamento (2 Tm 3.16; 2 Pe 3.16). E, pelo fato de a Bíblia ser a única revelação escrita de Deus dada pelo Espírito Santo, ela ainda é identificada como a “Palavra de Deus” (Mc 7.13; At 12.24; Ef 6.17).

2. O Cânon da Bíblia - A expressão “cânon” procede do hebraico “qãneh” com o sentido de “vara de medir”. O Dicionário Vine elucida que “a cana” abalada pelo vento (Mt 11.7; Lc 7.24) e a “cana” quebrada (Mt 12.20) citadas por Jesus são referência a essa palavra hebraica que representa uma das várias canas do Antigo Testamento (Is 42.3; Jó 40.21; Ez 29.6). O termo correspondente em grego é kanõn, que significa “régua”. Aparece no Novo Testamento com o sentido de regra moral (Gl 6.16) e também é traduzido como “medida” (2 Co 10.13,15). Quanto ao emprego entre os cristãos, Esequias Soares esclarece que:


Nos três primeiros séculos do cristianismo, o termo se referia ao conteúdo normativo, doutrinário e ético da fé crista. A partir do quarto século, os pais da igreja aplicaram as palavras “cânon” e “canônico” aos livros sagrados, para reconhecer sua autoridade como textos inspirados por Deus e instrumentos normativos para a vida e a conduta dos cristãos, portanto separados de outras literaturas.

Desse modo, na teologia o vocábulo “cânon” é empregado como “norma” de avaliação para identificar os livros sagrados. Em vista disso, o termo “canônico” passou a designar os 66 livros aceitos como divinamente inspirados (39 livros no A.T., e 27 no N.T.). Isso quer dizer que o Espírito Santo guiou o seu povo a reconhecer a autoridade desses escritos como regra de fé e prática. Nesse sentido, o cânon bíblico está completo. Nada pode ser acrescentado ou retirado das Escrituras canônicas (Ap 22.18,19).

Com o propósito de aprofundar essa compreensão, Norman Geisler enfatiza a diferença entres os livros canônicos e outros escritos religiosos:


Os livros canônicos fornecem o critério para a descoberta da verdade, mediante o qual todos os demais livros (não-canônicos) devem ser avaliados e julgados. Nenhum artigo de fé deve basear-se em documento não canônico, não importando o valor religioso desse texto. Os livros divinamente inspirados e autorizados são o único fundamento para a doutrina.

Nessa perspectiva, apenas os livros inspirados ou canônicos são os que constituem a regra e a autoridade final de fé para os cristãos. Isso não significa dizer que outros textos e literaturas cristãs, tratados, sermões e estudos teológicos não possuam algum valor devocional ou que não sirvam à edificação espiritual. Porém, todo e qualquer texto ou ensino não canônico jamais deve ou pode ser usado para definir ou delimitar as doutrinas cristãs. Assim sendo, nossa Declaração de Fé ratifica que, no encerramento do cânone divino, o Senhor Jesus chancelou a integridade e a completude da Bíblia Sagrada (Ap 22.18,19). 7 3. Os Dois Testamentos Bíblicos - O termo “testamento” vem do latim “testamentum”, que é tradução da palavra grega “diatheke” e da hebraica “berith”. Ambos os termos têm o sentido de “aliança”, “pacto” ou “concerto” de Deus com a humanidade. O Dicionário Bíblico Wycliffe reforça que o substantivo significa a obrigação autoimposta por Deus à reconciliação dos pecadores consigo mesmo (Gn 17.7; Dt 7-6-8; Sl 89.3,4). 8 O Dicionário Vine esclarece que, no ato de “fazer concerto”, era habitual o sacrifício de uma vítima (Gn 15.10; Jr 34.18,19). 9 O autor aos Hebreus revela que “um testamento tem força onde houve morte” (Hb 9.17); por isso, os dois testamentos bíblicos foram consagrados com sangue (Hb 9.18); o primeiro com sangue de animais (Hb. 9.19), e o segundo com o sangue do próprio Cristo (Hb 9.11-22).

A expressão “Antigo Testamento” foi inaugurada por Paulo (2 Co 3.14). Essa expressão paulina é traduzida como “Velho Testamento” (ARC); e “Antiga Aliança” (NAA). Embora outras passagens tenham ideia similar (Gl 4.24; Hb 9.25,26), essa expressão ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento, e refere-se aos 39 livros canônicos dos judeus reconhecidos por Jesus como “as Escrituras” (Mt 22.29), “a Lei, os Profetas e os Salmos” (Lc 24.44). Esses livros revelam que Deus estabelecera uma aliança com Israel, porém a nação falhou em obedecer aos termos desse pacto (Jr 31.32). Por essa razão, o profeta Jeremias anunciou que um dia Deus estabeleceria uma aliança diferente. A promessa era que Deus realizaria um concerto no lado dentro das pessoas: “porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo (Jr 31.33).

Nessa direção, o termo “Novo Testamento” é usado nas Escrituras para se referir ao cumprimento profético de Jesus como o Mediador da Nova Aliança (1 Co 11.25, 2 Co 3.6; Hb 8.6-13; 12.24). Essa expressão também passou a designar os 27 livros inspirados dos cristãos igualmente reconhecidos como “as Escrituras” (2 Pe 3.15,16). Como já mencionado, a palavra grega “diatheke” utilizada no texto bíblico pode significar tanto “aliança” como “testamento”. A preferência pelo emprego da expressão “testamento” deve-se à versão da Vulgata Latina. Desse modo, as designações “Antigo e Novo Testamento” como divisões principais da Bíblia, tal qual a conhecemos em nossos dias, teve início ao tempo de Tertuliano (150 d.C) e compreende os 66 livros canônicos que integram as Escrituras Sagradas.

II – O ANTIGO TESTAMENTO

1. Os Livros do Antigo Testamento - A classificação dos livros do Antigo Testamento, tal qual a conhecemos e utilizamos nos dias de hoje, se divide em 39 livros. A divisão utilizada pelos judeus é diferente da adotada pela Igreja cristã. A coletânea dos judeus somava 24 livros porque o agrupamento usava critérios distintos. Observe essa diferença e consequente correspondência nas tabelas abaixo:

Tabela 1. Disposição dos Livros do Antigo Testamento Hebraico

A Lei (Torá) 5 livros: 1. Gênesis, 2. Êxodo, 3. Levítico, 4. Números, 5. Deuteronômio.

Os Profetas (Nebhiim) 8 livros:

A. Profetas anteriores: 1. Josué, 2. Juízes, 3. Samuel, 4. Reis.

B. Profetas posteriores: 1. Isaías, 2. Jeremias, 3. Ezequiel, 4. Os Doze.

Os Escritos (Kethubhim) 11 livros:

A. Livros poéticos: 1. Salmos, 2. Provérbios, 3. Jó.  

B. Cinco rolos (Megilloth): 1. Cantares, 2. Rute, 3. Lamentações, 4. Ester, 5. Eclesiastes.

C. Livros históricos 1. Daniel 2. Esdras e Neemias, 3. Crônicas - Total: 24 livros

 

Tabela 2. Disposição dos Livros do Antigo Testamento Adotado pela Igreja Protestante

Pentateuco: 5 livros = 1. Gênesis, 2. Êxodo, 3. Levítico, 4. Números, 5. Deuteronômio

Históricos: 12 livros 1. Josué, 2. Juízes, 3. Rute, 4. 1 Samuel, 5. 2 Samuel, 6. 1 Reis, 7. 2 Reis, 8. 1 Crônicas, 9. 2 Crônicas, 10. Esdras, 11. Neemias, 12. Ester.

Poéticos: 5 livros = 1. Jó, 2. Salmos, 3. Provérbios, 4. Eclesiastes, 5. Cantares.

Proféticos Profetas Maiores: 5 livros: 1. Isaías, 2. Jeremias, 3. Lamentações, 4. Ezequiel 5. Daniel

Profetas Menores: 12 livros: 1. Oseias 2. Joel 3. Amós 4. Obadias 5. Jonas 6. Miqueias 7. Naum 8. Habacuque 9. Sofonias 10. Ageu 11. Zacarias 12. Malaquias - Total: 39 livros

Como observado na tabela 1, a divisão utilizada pelos judeus era tripartida: a) a Lei, b) os Profetas e c) os Salmos ou Escritos. O Senhor Jesus fez menção da Bíblia tripartida dos judeus quando disse: “convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na Lei de Moisés, e nos Profetas, e nos Salmos” (Lc 24.44). Conforme visto na tabela 2, a divisão adotada pelos cristãos protestantes constitui-se de quatro partes e baseia-se na disposição dos livros por tópicos, com origem na tradução das Escrituras Sagradas para o grego, a versão da septuaginta iniciada por volta do III século a.C. 11 Apesar de a cultura judaica fazer uma categorização diferente, o conjunto do Antigo Testamento soma os mesmos 39 livros divinamente inspirados, tanto para os judeus como para os cristãos protestantes.

2. Canonicidade do Antigo Testamento - Muito se discute acerca dos critérios utilizados para a admissão dos livros sagrados no cânon do Antigo Testamento. Algumas propostas — como considerar como teste de canonicidade a antiguidade do livro, se foi escrito na língua hebraica e se havia algum valor de cunho religioso — foram ideias sugeridas e rejeitadas. A conclusão da erudição bíblica é de que os livros canônicos foram divinamente revelados e que, na sua boa providência, Deus fez que seu povo reconhecesse e recebesse sua Palavra. 12 Nessa perspectiva, existem três fatores basilares na avaliação de um livro canônico, a saber:

(a) a inspiração divina, que atesta se o livro é inspirado pelo Espírito Santo (Ne 9.30; Zc 7.12; 2 Pe 1.21). Acerca desse critério, R. T. Beckwit afirma que “o que qualifica um livro para um lugar no cânon do Antigo ou do Novo Testamento não é simplesmente o fato de ser antigo, informativo ou útil, e de fazer muito tempo que é lido e valorizado pelo povo de Deus, mas sim que tenha autoridade de Deus para o que diz”. Significa dizer que o livro tinha de ser testado como divinamente inspirado por meio de provas irrefutáveis de sua veracidade. O teólogo Gleason Archer Jr. assevera que este é o único teste de canonicidade que permanece de pé, isto é, o testemunho que Deus o Espírito Santo dá à autoridade da sua própria Palavra.

(b) reconhecimento do povo de Deus, que atesta se o livro era aceito como autêntico por seus primeiros leitores (Êx 24.3,7; Dn 9.2). Esse critério está relacionado com a inspiração divina. Nesse aspecto, Norman Geisler enfatiza que “Deus dá autoridade divina a um livro, e os homens de Deus o acatam. Deus revela, e seu povo reconhece o que o Senhor revelou. A canonicidade é determinada por Deus e descoberta pelos homens de Deus”. Para exemplificar, citam-se os livros de Moisés (Êx 24.3), os de Josué, sucessor de Moisés (Js 24.26), os livros do profeta Samuel (1 Sm 10.25), dentre outros, que foram imediatamente reconhecidos pelo povo de Deus. Acrescenta-se a isso o reconhecimento autenticado pelo próprio Senhor Jesus nos Evangelhos (Lc 24.44).

(c) preservação pelo povo de Deus, que atesta se o livro era conservado como Palavra de Deus (Dt 31.24-26; Dn 9.2). Nem todos os escritos de cunho religioso foram aceitos e conservados como inspirados pelo povo de Deus. Por exemplo, Tobias, Judite, Baruque, Macabeus I e II, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e outros foram rejeitados e considerados apócrifos. Eles foram recusados por seus erros teológicos e históricos. Não obstante, a lei de Moisés foi preservada na Arca (Dt 31.26) e dentro do Templo nos dias de Josias (2 Rs 23.24). Os ensinos de Samuel foram escritos “num livro e [colocados] perante o Senhor” (1 Sm 10.25). O profeta Daniel e Esdras possuíam uma coletânea com cópias dos livros de “Moisés e os Profetas” (Dn 9.2,6,13; Ne 9.14,26-30).

Por conseguinte, a confirmação desses elementos revela algumas verdades cruciais: (i) não se pode afirmar que é a Igreja que determina a canonicidade de um livro por meio de regras de reconhecimento; (ii) desde o início, os livros do Antigo Testamento foram recebidos e guardados como inspirados e autorizados por Deus, dotados de veracidade e de autoridade (Jz 3.4); (iii) talvez não saibamos explicar totalmente como Deus implantou essa convicção no coração de seu povo; e (iv) podemos confiar na autoridade do Antigo Testamento, pois a sua canonicidade é irrefutavelmente atestada pelo Senhor Jesus e pelos apóstolos (Mt 5.17,18; Lc 24.27; Rm 5.12, 1 Co 10.1-5).

3. Particularidades do Antigo Testamento - Quase a totalidade dos livros foi escrita em hebraico chamado na Bíblia de língua de Canaã (Is 19.18). Algumas porções foram escritas em aramaico, uma espécie de dialeto que deu origem à língua árabe. Destaca-se que as descobertas dos rolos do Mar Morto (entre 1947 e 1964 d.C.) confirmam a preservação e a suficiência dos textos do Antigo Testamento. Esequias Soares revela que, com exceção ao livro de Ester, todos os demais livros estão representados e confirmados pelos mais de 800 rolos encontrados nas 11 cavernas de Qumran, muitos deles vindo da Babilônia e do Egito, e alguns desses manuscritos ainda eram escritos com a grafia do hebraico arcaico.

Outra particularidade a destacar é que os judeus e os cristãos protestantes jamais aceitaram a inserção dos livros apócrifos no Antigo Testamento. Porém, o catolicismo romano os declarou canônicos no Concílio de Trento (1546). Desse modo, o Antigo Testamento católico possui os sete livros apócrifos acima citados, perfazendo um total de 46 livros. Além disso, a Bíblia católica inseriu acréscimos em Ester (Et 10.4ss), oração de Azarias (Dn 3.34-90); Suzana (Dn 13), e Bel e o Dragão (Dn 14).

Reitera-se que tais livros e acréscimos não são divinamente inspirados; eles são desprovidos de autoridade tanto espiritual como doutrinária. O último livro canônico foi o do profeta Malaquias, que o concluiu antes do ano 430 a.C.; desde então, nada mais pode ser acrescido ao cânon do Antigo Testamento. E, conforme o teólogo Norman Geisler, para facilitar a tarefa de citar a Bíblia, em 1.227 d.C. o texto foi dividido em capítulos e, por volta de 1.445 d.C., o Antigo Testamento foi dividido em versículos.

III – O NOVO TESTAMENTO

1. Os Livros do Novo Testamento - Esses livros foram reconhecidos pela Igreja após a morte e ressurreição do Senhor Jesus Cristo e estão classificados em quatro grupos principais: a) Evangelhos, que são os quatro livros de Mateus, Marcos, Lucas e João; b) Histórico, formado pelo livro de Atos dos Apóstolos; c) Epístolas, que se subdividem em Epístolas Paulinas, com 13 cartas de Romanos a Filemom; as Epístolas Gerais, com 8 cartas de Hebreus a Judas; e d) Revelação, constituído pelo livro de Apocalipse. O conjunto totaliza 27 livros inspirados e autorizados que são chamados de canônicos (1 Co 2.4,13). Observe essa categorização na tabela abaixo.

Tabela 3. Descrição dos Livros do Novo Testamento

Evangelhos - 5 livros: 1. Mateus, 2. Marcos 3. Lucas 4. João.

História – 1 livro: Atos dos Apóstolos

Revelação –1 livro:  Apocalipse

Epístolas Paulinas – 13 livros: 1. Romanos 2. 1 Coríntios 3. 2 Coríntios 4. Gálatas 5. Efésios 6. Filipenses 7. Colossenses 8. 1 Tessalonicences 9. 2 Tessalonicenses 10. 1 Timóteo 11. 2 Timóteo 12. Tito 13. Filemom

Epístolas Gerais – 8 livros: 1. Hebreus, 2. Tiago, 3. 1 Pedro, 4. 2 Pedro, 5. 1 João, 6. 2 João, 7. 3 João, 8. Judas Total: 27 livros

Nos primórdios do cristianismo, ainda no século I d.C., surgiram muitos falsos ensinos e falsos profetas conforme Cristo já tinha alertado a Igreja (Mt 7.15; Mc 13.22). Durante os séculos II e III, diversos livros heréticos foram escritos e receberam o nome de livros espúrios (pseudepígrafos e apócrifos). O conteúdo desses livros se resume em falsos ensinos permeados de erros gnósticos, docéticos e ascéticos acompanhados de desmedida fantasia religiosa. 19 Faz-se ainda menção de livros que desfrutavam de algum prestígio histórico e devocional, tais como “o Pastor de Hermas” (c. 15-140 d.C) e “o didaquê” (c. 100-120 d.C). Contudo, os livros espúrios e não canônicos jamais foram reconhecidos como inspirados. Somente os 27 livros acima listados é que são aceitos como autênticos e fidedignos de integrar o cânon do Novo Testamento.

2. Canonicidade do Novo Testamento - O princípio básico adotado para a canonicidade do Novo Testamento é similar ao do Antigo Testamento, ou seja, a questão da autoridade atestada pela inspiração divina. Milton Fischer sublinha que o reconhecimento de que os apóstolos e seus companheiros eram autênticos porta-vozes de Deus é o que determina a canonicidade de seus escritos. Assim sendo, os critérios de avaliação do Novo Testamento são iguais aos que determinam o cânon do Antigo, isto é, a inspiração, o reconhecimento e a preservação dos livros como Palavra de Deus.

Nesse sentido, a Bíblia oferece indiscutíveis provas de inspiração do Novo Testamento. Os apóstolos sempre reivindicaram que as palavras que escreviam não eram suas, mas as recebiam diretamente da parte de Deus (1 Ts 2.13; 2 Tm 3.16; 2 Pe 1.21). Wayne Grudem observa que, uma vez que estabelecemos que um escrito do Novo Testamento pertence à categoria especial de “Escritura” (2 Tm 3.16), implica dizer que ele possui igualmente a característica que Paulo atribui a “toda a escritura”, isto é, “inspirada por Deus” e assim todas as suas palavras são verdadeiras palavras de Deus.

Quanto ao reconhecimento dos livros como fidedignos, desde o início os escritos falsos foram refutados pela Igreja. Paulo exorta a Igreja a permanecer firme na fé e nos ensinos inspirados, entre eles os preceitos de Moisés e dos profetas, bem como as instruções das epístolas (2 Ts 2.15). Pedro alertou para que a Igreja não desse ouvidos às heresias de perdição que seriam propaladas por falsos profetas e falsos mestres (2 Pe 2.1). João advertiu os irmãos a não derem crédito a todo espírito, mas colocar a prova toda e qualquer revelação (1 Jo 4.1). O Comentário Bíblico Beacon assinala que os crentes deveriam desconsiderar as opiniões de teoristas e fanáticos, e aderir-se a “palavra”.

Em relação à conservação das Escrituras, os primeiros cristãos adotaram a prática de leitura dos livros autorizados em suas reuniões e cultos. Essa tradição de leitura pública das Escrituras era um costume antigo entre os judeus. Moisés e Josué eram adeptos dessa conduta (Êx 24.7; Js 8.34); Josias, Esdras e os levitas fizeram o mesmo (2 Rs 23.2; Ne 8.8). Essa cultura foi incorporada na liturgia cristã. Essa ação de leitura pública dos livros do Novo Testamento auxiliou no processo de canonicidade dos escritos divinamente inspirados (1 Ts 5.27; Cl 4.16; Ap 1.3).

Mediante tais fatos, atesta-se que, desde o começo, a Igreja Primitiva reconheceu e preservou os livros canônicos, alicerçada sobre o fundamento dos Apóstolos e dos Profetas (Ef 2.20). Norman Geisler afirma que os primeiros cristãos, apesar de terem sido bombardeados por muitos escritos falsos, pelo final do século I, já tinham concluído o cânon do Novo Testamento. Os debates prosseguiram em virtude de várias desinformações e falha de comunicação, mas desde o século V a Igreja cristã tem reconhecido esses 27 livros como o cânon do Novo Testamento.

3. Particularidades do Novo Testamento - Como particularidade, destaca-se que sete livros do Novo Testamento foram classificados como “antilegomena”. Essa designação significa que, em algum momento e por alguma razão, a autenticidade desses livros foi questionada por alguns dos Pais da Igreja e, por causa disso, por volta do século IV, esses livros ainda estavam desprovidos do reconhecimento universal. De acordo com o historiador Eusébio de Cesareia, tais livros são os seguintes:


Não se deve esconder, porém, que alguns põem de lado a Epístola aos Hebreus, dizendo ser contestada, alegando não ser uma das epístolas de Paulo [...] Entre os livros questionados, ainda que sejam bem conhecidos e aprovados por muitos, são reputados aquele chamado Epístola de Tiago e de Judas. Também a Segunda Epístola de Pedro e os chamados a Segunda e a Terceira de João [...] além disso, como já afirmei, caso pareça correto, o Apocalipse de João, que alguns como já se disse, rejeitam, mas outros colocam entre os genuínos.

Norman Geisler pondera que isso não significa que não haviam tido aceitação inicial por parte das comunidades cristãs primitivas. O próprio Eusébio assegura que não eram espúrios, mas que, embora reconhecidos por muitos, estavam sendo contestados por outros. Geisler anota que “o problema básico a respeito da aceitação da maioria desses livros não era sua inspiração, ou falta de inspiração, mas a falta de comunicação entre o Oriente e o Ocidente a respeito de sua autoridade divina”. Desse modo, assim que tais dúvidas foram dirimidas, a partir do século V, esses livros deixaram de ser questionados.

Uma especificidade do Novo Testamento repousa no fato de que todos os seus livros foram escritos em grego koiné, um dialeto comum e presente por toda a cultura de fala grega e que muito auxiliou na propagação do Evangelho nos primórdios do cristianismo (At 19.10). Algumas expressões, mesmo redigidas no vernáculo grego, possuem significado em aramaico. Dentre elas, citamos: Talitá cumi — “Menina, levanta-te” (Mc 5.41); Aba Pai — “Lit.: Pai, pai; ‘Meu Pai’” (Mc 14.36); Eloí, Eloí, lemá sabactâni? — “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mc 15.34).

O conjunto dos livros canônicos do Novo Testamento foi escrito antes do término do século I. O último livro é o Apocalipse de João, datado por volta do ano 96 d.C.; e ratificamos que, desde o encerramento do cânon, os cristãos reconhecem apenas os 27 livros como inspirados. Como já visto, em 1.227 d.C., o texto foi separado em capítulos. Em torno de 1.555 d.C., o Novo Testamento também foi dividido em versículos. A divisão em capítulos e versículos facilitou a leitura e a memorização, além de possibilitar o estudo sistemático da inspirada Palavra de Deus.

(Extraído do livro A supremacia das Escrituras: a inspirada, inerrante e infalível Palavra de Deus. Douglas Baptista p.68-84)