Debate para o esclarecimento do valor das
indulgências pelo Dr. Martin Luther, 1517
Por amor à verdade e no
empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a
presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa
Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta
razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco
oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor
Jesus Cristo. Amém.
1 Ao dizer: "Fazei
penitência", etc. [Mt 4.17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que
toda a vida dos fiéis fosse penitência.
2 Esta penitência não pode
ser entendida como penitência sacramental (isto é, da confissão e satisfação
celebrada pelo ministério dos sacerdotes).
3 No entanto, ela não se
refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência interior seria nula,
se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação da carne.
4 Por consequência, a pena
perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência
interior), ou seja, até a entrada do reino dos céus.
5 O papa não quer nem pode
dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos
cânones.
6 O papa não pode remitir
culpa alguma senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou,
sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem
desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.
7 Deus não perdoa a culpa de
qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao
sacerdote, seu vigário.
8 Os cânones penitenciais são
impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos
moribundos.
9 Por isso, o Espírito Santo
nos beneficia através do papa quando este, em seus decretos, sempre exclui a
circunstância da morte e da necessidade.
10 Agem mal e sem conhecimento
de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas
para o purgatório.
11 Essa erva daninha de
transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido semeada
enquanto os bispos certamente dormiam.
12 Antigamente se impunham as
penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da
verdadeira contrição.
13 Através da morte, os
moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por
direito, isenção das mesmas.
14 Saúde ou amor imperfeito no
moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto mais, quanto menor
for o amor.
15 Este temor e horror por si
sós já bastam (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do
purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.
16 Inferno, purgatório e céu
parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semidesespero e a segurança.
17 Parece desnecessário, para
as almas no purgatório, que o horror diminua na medida em que cresce o amor.
18 Parece não ter sido
provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se
encontram fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.
19 Também parece não ter sido
provado que as almas no purgatório estejam certas de sua bem-aventurança, ao
menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.
20 Portanto, sob remissão
plena de todas as penas, o papa não entende simplesmente todas, mas somente
aquelas que ele mesmo impôs.
21 Erram, portanto, os
pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e
salva pelas indulgências do papa.
22 Com efeito, ele não
dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas
deveriam ter pago nesta vida.
23 Se é que se pode dar algum
perdão de todas as penas a alguém, ele, certamente, só é dado aos mais
perfeitos, isto é, pouquíssimos.
24 Por isso, a maior parte do
povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta
promessa de absolvição da pena.
25 O mesmo poder que o papa
tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura tem em sua diocese
e paróquia em particular.
26 O papa faz muito bem ao dar
remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de
intercessão.
27 Pregam doutrina humana os
que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando
[do purgatório para o céu].
28 Certo é que, ao tilintar a
moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja,
porém, depende apenas da vontade de Deus.
29 E quem é que sabe se todas
as almas no purgatório querem ser resgatadas? Dizem que este não foi o caso com
S. Severino e S. Pascoal.
30 Ninguém tem certeza da
veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.
31 Tão raro como quem é
penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.
32 Serão condenados em
eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua
salvação através de carta de indulgência.
33 Deve-se ter muita cautela
com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva
de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Deus.
34 Pois aquelas graças das
indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental,
determinadas por seres humanos.
35 Não pregam cristãmente os
que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgatar ou
adquirir breves confessionais.
36 Qualquer cristão
verdadeiramente arrependido tem direito à remissão pela de pena e culpa, mesmo
sem carta de indulgência.
37 Qualquer cristão
verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo
e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.
38 Mesmo assim, a remissão e
participação do papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse)
constituem declaração do perdão divino.
39 Até mesmo para os mais
doutos teólogos é dificílimo exaltar perante o povo ao mesmo tempo, a liberdade
das indulgências e a verdadeira contrição.
40 A verdadeira contrição
procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências as afrouxa e
faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.
41 Deve-se pregar com muita
cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue
erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.
42 Deve-se ensinar aos
cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa, de
alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia.
43 Deve-se ensinar aos
cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do
que se comprassem indulgências.
44 Ocorre que através da obra
de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as
indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.
45 Deve-se ensinar aos
cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências
obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.
46 Deve-se ensinar aos
cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é
necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com
indulgência.
47 Deve-se ensinar aos
cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.
48 Deve-se ensinar aos cristãos
que, ao conceder indulgências, o papa, assim como mais necessita, da mesma
forma mais deseja uma oração devota a seu favor do que o dinheiro que se está
pronto a pagar.
49 Deve-se ensinar aos
cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua confiança
nelas, porém, extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por causa
delas.
50 Deve-se ensinar aos
cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências,
preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la com a pele, a
carne e os ossos de suas ovelhas.
51 Deve-se ensinar aos
cristãos que o papa estaria disposto - como é seu dever - a dar do seu dinheiro
àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente
o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.
52 Vã é a confiança na
salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até
mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas.
53 São inimigos de Cristo e do
papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por
inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.
54 Ofende-se a palavra de Deus
quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do
que a ela.
55 A atitude do papa é
necessariamente esta: se as indulgências (que são o menos importante) são
celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o Evangelho
(que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos,
procissões e cerimônias.
56 Os tesouros da Igreja, dos
quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem
conhecidos entre o povo de Cristo.
57 É evidente que eles,
certamente, não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os
distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.
58 Eles tampouco são os
méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça
do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.
59 São Lourenço disse que os
pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra
como era usada em sua época.
60 É sem temeridade que
dizemos que as chaves da Igreja, que lhe foram proporcionadas pelo mérito de
Cristo, constituem este tesouro.
61 Pois está claro que, para a
remissão das penas e dos casos, o poder do papa por si só é suficiente.
62 O verdadeiro tesouro da
Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.
63 Este tesouro, entretanto, é
o mais odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os últimos.
64 Em contrapartida, o tesouro
das indulgências é o mais benquisto, e com razão, pois faz dos últimos os
primeiros.
65 Por esta razão, os tesouros
do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens possuidores de
riquezas.
66 Os tesouros das
indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos
homens.
67 As indulgências apregoadas
pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas
como tal, na medida em que dão boa renda.
68 Entretanto, na verdade,
elas são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade
na cruz.
69 Os bispos e curas têm a
obrigação de admitir com toda a reverência os comissários de indulgências
apostólicas.
70 Têm, porém, a obrigação
ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para
que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que lhes
foi incumbido pelo papa.
71 Seja excomungado e maldito
quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.
72 Seja bendito, porém, quem
ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador
de indulgências.
73 Assim como o papa, com
razão, fulmina aqueles que, de qualquer forma, procuram defraudar o comércio de
indulgências,
74 muito mais deseja fulminar
aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e
verdade.
75 A opinião de que as
indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem
mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é
loucura.
76 Afirmamos, pelo contrário,
que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais
no que se refere à sua culpa.
77 A afirmação de que nem
mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças é
blasfêmia contra São Pedro e o papa.
78 Afirmamos, ao contrário,
que também este, assim como qualquer papa, tem graças maiores, quais sejam, o
Evangelho, os poderes, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Co 12.
79 É blasfêmia dizer que a
cruz com as armas do papa, insignemente erguida, equivale à cruz de Cristo.
80 Terão que prestar contas os
bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam
difundidas entre o povo.
81 Essa licenciosa pregação de
indulgências faz com que não seja fácil, nem para os homens doutos, defender a
dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.
82 Por exemplo: por que o papa
não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade
das almas - o que seria a mais justa de todas as causas -, se redime um número
infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da
basílica - que é uma causa tão insignificante?
83 Do mesmo modo: por que se
mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que ele não restitui
ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, visto
que já não é justo orar pelos redimidos?
84 Do mesmo modo: que nova
piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, permitem ao ímpio e
inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém não a redimem por causa
da necessidade da mesma alma piedosa e dileta, por amor gratuito?
85 Do mesmo modo: por que os
cânones penitenciais - de fato e por desuso já há muito revogados e mortos -
ainda assim são redimidos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se
ainda estivessem em pleno vigor?
86 Do mesmo modo: por que o
papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos mais ricos Crassos, não constrói
com seu próprio dinheiro ao menos esta uma basílica de São Pedro, ao invés de
fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?
87 Do mesmo modo: o que é que
o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita, têm direito à
remissão e participação plenária?
88 Do mesmo modo: que
benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa, assim como
agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações
100 vezes ao dia a qualquer dos fiéis?
89 Já que, com as
indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do o dinheiro, por que
suspende as cartas e indulgências outrora já concedidas, se são igualmente
eficazes?
90 Reprimir esses argumentos
muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando
razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar
os cristãos.
91 Se, portanto, as
indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do
papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo
teriam surgido.
92 Fora, pois, com todos esses
profetas que dizem ao povo de Cristo: "Paz, paz!" sem que haja paz!
93 Que prosperem todos os
profetas que dizem ao povo de Cristo: "Cruz! Cruz!" sem que haja
cruz!
94 Devem-se exortar os
cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através das penas,
da morte e do inferno;
95 e, assim, a que confiem que
entrarão no céu antes através de muitas tribulações do que pela segurança da
paz.
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